
Somos um povo complexo e, aproveitando as comemorações da Semana de Arte Moderna, antropofágico. Deglutimos o que nos parece inimigo para que suas qualidades brotem em nosso âmago. Mas se deglutimos as qualidades, também ingerimos e ruminamos defeitos. E isso pode até explicar o negro que antropofagia o branco colonizador para também se tornar racista, tal qual o Capitão do Mato da Fundação Palmares.
Bolsonaro foi eleito porque antropofagicamente vomitamos o que tínhamos de pior em nós brasileiros. Todos os defeitos antropofagicamente adquiridos colocamos pra fora na eleição do capitão da boçalidade. O que estava encoberto por nossas qualidades, ganhou vida.
Não mais éramos o homem cordial com o coração bom da hospitalidade, da camaradagem, do jeitinho. O nosso coração foi tomado pela maldade aflorada orgulhosamente porque foi possível elegermos o mal em nós. E o chamaram de mito. O mito é uma narrativa de caráter imagético-simbólica, não é realidade palpável. Aquele mito saiu de nosso âmago dos defeitos absorvidos e escondidos: racista, misógino, homofóbico, violento, fascista, abafando tudo que até então sobressaía de nosso caráter de qualidades que, de tão fascinantes, não permitia que o esgoto de dejetos de nossos defeitos se manifestasse.
E ficamos atônitos com o que aconteceu. Nós que não nos deixamos ser tomados por instintos primitivos, vimos que eles foram vitoriosos e uma maioria ruidosa com a camisa da seleção tomou as ruas e o governo desses instintos permitiu que a ignorância tomasse as universidades; o revanchismo dos torturadores assumissem os direitos humanos, agora desumanizados; o garimpo destruísse aldeias de povos originários e as correntes e o fogo destruidor do agronegócio invadissem as terras de uma floresta já maltratada; as milícias fossem armadas e chamadas de “homens de bem” que tocam o terror aos “homens comuns”; a polícia matasse agora mais negros e pobres, incentivada pela turba; as leis civilizatórias e a própria constituição fossem atacadas e quebradas sem piedade. O culto à morte louvou uma pandemia que já vitimou quase um milhão de brasileiros; o negacionismo se opôs a vacina que salva vidas e o terraplanismo nos levou à beira do abismo das trevas, onde a ciência foi assassinada.
E o governo que só destrói, também deixou a economia degringolar e a fome voltou, a inflação nos ameaça e o desemprego é gigantesco. Como esse governo ainda tem 30% de apoiadores? A adoração desses instintos de morte é, para eles, mais forte que a fome. Ter um igual na presidência é tão prazeroso, que anula a dor do desemprego. Os nossos piores defeitos não se importam nem com a própria morte de quem os professam. O gozo imediato é muito grande. Só isso explica essa legião de imbecis permanecer no barco com o capitão da morte.
Ainda bem que a pulsão de vida voltou para a maioria e o capitão dificilmente será reeleito. Mas aqui é que temos um problema ainda grande. Creio que uma vitória de uma frente democrata no primeiro turno deixaria o barco do capitão à deriva e os piores institutos antropofágicos seriam recolhidos para que pudéssemos voltar à normalidade de antes desse tsunami que nos atinge ainda.
Uma ida para um segundo turno dará ao capitão e seu navio de insensatos uma batalha desnecessária. Mesmo perdendo, seria inflada a bandeira da extrema-direita que nos trará problemas sérios num futuro próximo. Será como um navio fantasma, arregimentando mortos-vivos da nossa desgraça que aparecerá vez por outra em mares bravios, ameaçando de assalto novamente o processo civilizatório.
Com o fascismo todo cuidado é pouco para derrota-lo. Os democratas deveriam estar unidos para combater essa ameaça futura. A frente Lula-Alkmin esboça essa união. A candidatura de Ciro, talvez outra do PCB e, agora, a tentativa do PSOL de lançar Glauber Braga dificultam esse enfrentamento. E um segundo turno com Bolsonaro certamente infla a bandeira da extrema-direita, que mesmo perdendo não estará morta.
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desenho: Gervásio
Concordo com você ! Neste momento teríamos que estar todos juntos mas infelizmente isto não parece afetar a todos do mesmo modo!
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