
Alguns estudiosos garantem que a civilização começa quando, diferente de outros grupos de primatas, começamos a enterrar os mortos. A antropóloga Margareth Mead acredita que a civilização começa quando passamos a cuidar dos mais frágeis. Portanto a antropologia considera que achados da cicatrização do fêmur garantiriam o cuidado com o outro como rastros de uma civilização inequívoca. Nenhuma outra espécie de primata sobrevive com a fratura de um fêmur. Sem sua cicatrização o animal não poderia sobreviver e seria presa fácil de predadores, ou mesmo sem poder acompanhar o grupo, morreria abandonado. E só o cuidado do grupo social em formação pode garantir essa cicatrização.
A espiritualidade, que nos caracteriza também enquanto espécie, tem uma profunda relação com o ritual que dedicamos aos mortos. Não abandonamos nossos mortos e a liturgia da despedida pode caracterizar crenças de civilizações diferentes, mas todas com o significado comum: a despedida cerimonial do morto para que seja lembrado.
O Egito queria garantir a preservação dos corpos pelo embalsamento, o Tibet tentou entender a travessia dos mortos para outro estado além da vida, os Fenícios queimavam em rituais para evitar que os vermes profanassem o morto, os Chineses cremavam para que os eflúvios do fogo os levassem para perto dos familiares, os gregos nos ensinaram que habitamos o solo sagrado onde enterramos nossos mortos.
E esse traço comum civilizatório é um arquétipo de nossas culturas. Os astecas, os maias e os incas no novo mundo, sem o contato contíguo com civilizações do mundo antigo, construíram monumentos suntuosos a um mistério que viam acontecer quando a vida nos deixava. Os nossos indígenas cultuam seus mortos nos troncos da floresta em que vivem em comunhão. O ritual do Quarup é magistral.
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Nesse triste país, abandonado à própria sorte numa pandemia mortal, nosso neurocientista Miguel Nicolelis assegura que seremos um laboratório a céu aberto para mostrar ao mundo como a pandemia pode dizimar um povo se não usar a ciência para o controle do vírus Sars-Cov-19. Enquanto em todo o mundo a conjunção de vacinas e lockdonw consegue deter a virulência de uma pandemia que já dura um ano, entre nós ela juntou uma segunda onda, sem que a primeira arrefecesse, e já vive uma terceira onda com mutações que talvez não responda às vacinas e se apresenta muito mais contagiante e mortal.
Além do sofrimento de uma doença que parece nos levar perto da morte, os sobreviventes estão traumatizados por sequelas que a ciência ainda não dominou. Mas também os que não adoeceram, mas perderam entes queridos para uma doença que os separou, sofreram a impossibilidade da despedida. Pelo contágio, muito alto pelas secreções cadavéricas, foram impedidos de fazer o ritual primário que nos caracteriza como civilizados. Os enterros em valas comuns, que entre nós acontece desde o começo pela quantidade inacreditável de mortos, afastam os familiares de um ritual necessário de despedida. Isso, inevitavelmente, trará consequências ainda não avaliadas na saúde mental de uma geração. Inevitável o sentimento de abandono dos mortos sem que um ritual possa afastar os vivos dos que nos deixaram. Os mortos e vivos habitam a falta de uma separação transcendente, com consequências ainda não avaliadas pelos estudiosos.
Lembramos os corpos que desapareceram na ditatura e que até hoje carregam uma página de terror doloroso na nossa história. Também ali se perdeu o ritual transcendente da separação com feridas que sangram até hoje.
Mas essa doença, sem quaisquer medidas para seu controle no país, nos levou a uma situação ainda pior que a separação dos mortos sem despedida. Não temos como cuidar de nossos doentes. Estamos aquém de nossos antepassados que começaram a civilização cuidando do fêmur fraturado do companheiro. Hoje nossos companheiros arfam sem ar nos lares, nas ambulâncias, nos corredores de hospitais aguardando vagas num respiradouro. Assistimos a morte do nosso fraturado sem podermos prestar qualquer ajuda. Voltamos para antes da sociedade das cavernas.
Já morreram muito mais de um quarto de milhão e todos os dias é como se acontecesse a queda de cinco ou seis aviões grandes com mais de mil vítimas e nos acostumamos com os números frios da televisão. As autoridades desse país são autores ou cúmplice dessa tragédia. O suposto presidente e o ministro da morte deveriam responder por crime contra a humanidade. O parlamento e o judiciário são cúmplices por omissão. Estamos abandonados;
E as mortes já estão muito próximas e parece que não escaparemos. Ou de morrer ou da dor de desistirmos da civilização!
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desenho: 1000TON
Muito bom e muito triste. Por onde retomar o fio da meada, a lógica da civilidade, o caminho da esperança? É preciso, a despeito de toda violência que este momento traduz, fortalecer qualquer espaço civilizatório mínimo que se consiga identificar.
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O continente africano vive epidemias desta dimensão uma atras da outra e o mundo sempre contemplou com indiferença
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Excelente! Grata!
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Belíssimo texto, científico, realista e humanitário
Nos comove pela sua veracidade
Todos nós deveríamos lê-lo e relê-ló diariamente
Seríamos assim capazes de nos despertarmos?
Maria Cecília Freire
mcmfreire@uol.com.b
Jundiaí. SP
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Texto muito bom sobre uma tragédia tão triste e lamentável. Parabéns, Edimar Oliveira. Obrigado por nos ajudar nessa compreensão tão difícil em um Brasil inacreditavelmente sufocado pela não política. P. S.: O sobrenome da antropóloga cultural norte-americana é Mead. Margaret Mead (1901-1978). Saúde, paz e alegria a você!
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Obrigado. Corrigido,
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Texto para nos ajudar a refletir. Necessário uma tomada de decisão !
Até quando vamos continuar a não enterrar nossos mortos e a conviver com a barbárie?
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Tudo passa debaixo do Sol.
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