Recebi o livro de Isis Rost (O RISCO DO BERRO – Torquato, neto – Morte e Loucura, edição da autora, PI, 2017), que além da dedicatória, acompanhava um simpático bilhete explicando a razão do livro e seu futuro projeto sobre o Anjo Torto.
Tive uma grata surpresa. Além da ousada diagramação, a riqueza de imagens que acompanham uma pesquisa exaustiva e a bonita capa – todos resultante de um trabalho pessoal da autora – o livro segue uma narrativa de colagens da escrita de Torquato (em itálico), que imbricadas ao texto da pesquisadora ganham um sentido de cumplicidade, como se o que fala a autora fosse complementado pelo o personagem – quase como se os dois fossem um só narrador. Não consegui parar de ler. Acabei as duzentas e tantas páginas em menos de 24 horas. Porque ao retratar Torquato a narradora põe o personagem para conduzir a narrativa. E apoia suas suposições na condução da narrativa feita pelo personagem. Maravilhoso exercício literário. Isso sem perder o fio da meada pesquisada. Trabalho admirável.
Para os exigentes rigores da academia – o livro é uma extensão de um TCC – assim como para os puristas da pesquisa “científica” Isis faz uma recomendação “antes de usar”:
“Isto é contraindicado às pessoas caretas, portadores de mau-gosto em geral ou senso estético inutilizável, e àqueles que não sabem viver. Deverá ser mantido longe do alcance de reaças, ‘academicistas’ crônicos, pernósticos, portadores de insensibilidade artística.”
O aviso é muito claro. Eu adorei! Assim dito, levei muito mais a sério o trabalho de Isis.
Mas não pensem que a forma inovadora do texto, tratando de temas complexos como suicídio, loucura e drogas, se traduza apenas numa colagem sem consequências. Ao mesmo tempo em que “compreende” as atitudes torquatianas em consonância com a época vivida, o texto é respaldado em autores de peso como Adorno, Arent, Benjamin, Berman, Nietzsche, Foucault, assim como faz uma revisão dos autores que tentaram traduzir Torquato nas academias ou recorre à literatura e às artes plásticas para respaldar seu ponto de vista (tudo também ilustrado com imagens). A autora, intencionalmente, mantém-se ao lado do biografado para concordar com suas atitudes no contexto daquela época conturbada e defende com unhas e dentes o direito de Torquato berrar e correr os riscos inerentes ao berro.
Em alguns momentos, salta da prosa para uma poética textual e formal (que não posso reproduzir aqui) da narradora para falar da poesia de Torquato:
“A poética de Torquato é contra. Contra a repressão, a ditadura. Contra as portas fechadas pela censura. Contra a poesia convencional, antagonista aos recursos poéticos tradicionais. Torquato questiona tudo, até o conceito de marginais. Como os neoconcretos, Torquato se aproxima da comunicação visual. Seja escrita, encenada, musicada ou falada, a arte – Torquato ocupa espaços. Tentando q todos compreendam que eu morri, Torquato se reconhece como 1 indivíduo tentando lutar contra a tragédia e ao mesmo tempo apaixonado por ela”. (no itálico – também no original – a fala é de Torquato).
Infelizmente neste espaço não consegui dar a forma espacial do poema com que a autora descreve o autor pesquisado. Mas vejam o imbricamento da colagem como se os dois fossem parceiros na mesma poesia. O pesquisado e a pesquisadora.
Às vezes sistematiza um paradoxo filosófico:
“Torquato teria se tornado suicida pela natureza dos próprios questionamentos, ou o potencial suicida o transformou em poeta pela necessidade de expressar sua ânsia de vida – de morte – ou da falta de vida num ambiente inóspito?”
Para responder usando seu “método” do imbricamento da fala do personagem nos seus próprios argumentos:
“Torquato era um apaixonado pela vida de forma violenta, a ponto de não tolerar a maneira como ela estava sendo vivida por aí, com o conformismo sendo regra geral em tudo. Para Torquato, está vivo nunca foi apenas isso, significa estar tentando sempre, estar caminhando entre as dificuldades, estar fazendo as coisas, e sem a menor inocência. Os inocentes estão esperando enquanto aproveitam para curtir bastante o conformismo disfarçado em lamúrias, ataques apocalípticos e desesperos sem fim. Torquato encontra nas imagens da morte a vontade da potência da vida. Por levar a convicção ao máximo em todos os instantes, em todos os lugares, ele encontraria apenas na morte a ruptura precisada e provocada”. (Em itálico no original a fala de Torquato. Reparem na “parceria ortográfica” em disfarçado)
E ilustra seu argumento com um poema gráfico que mistura AMOR e MORTE, como no verso “amar-te a morte morrer”.
Não quero me estender até para não tirar a surpresa dos leitores que terão oportunidade (e a felicidade) de obterem o livro. Isis Rost trata a loucura e as drogas (temas que mais me interessam) com o mesmo método exemplificado aqui. Ainda se atreve ir ao cinema “onde a morte é musa e protagonista” e à NAVELOUCA – paródia da “stultífera navis” foucautiana – para uma melhor compreensão do poeta.
Duas coisas aconteceram nesse final de ano para encadear melhor a compreensão do contraditório e contravertido Anjo Torto. Os dois trabalhos (que não se tocaram ainda) dissecam o rompimento conceitual de Torquato com os baianos, com o cinema novo que ficou velho, com a contracultura cooptada pelo sistema, com a poesia que “da janela examina a folia”, com a sanidade da época – doença maior que a loucura, com a morte/vida – como antítese.
Não hesitaria dizer que esses dois trabalhos são “Torquato – todas as horas do fim”, filme de Eduardo Ades e Marcus Fernando e o livro “O Risco do Berro” de Isis Rost. Sorte a nossa conhecer esses dois trabalhos.
O Risco é uma surpresa. Uma biogravida/morte a ser reconhecida pelos que desejam compreender a loucura da sanidade daqueles tempos. Leiam, idiotas!
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Alguns Post Scripta necessários sobre O Risco:
- Esse livro não pode ficar no círculo restrito de Maranhão/Piauí em edição trabalhosa da autora. É urgente que uma editora com poder de distribuição se interesse por uma edição nacional.
- Maravilha a recuperação da entrevista que eu e Durvalino Couto (que fazíamos o jornal com P. J. Cunha) fizemos com Torquato em 1971, reproduzido n’O Risco na nossa página de “Comunicação” do Jornal Opinião em Teresina. Depois dessa entrevista, Torquato passou a escrever conosco no jornal.
- Surpresa também encontrar um fac-símile de um artigo de Torquato na “Hora Fa-tal”, suplemento diagramado por mim do jornal “A Hora”.
- Adorei a definição de “esquálido” para o alter-ego de Torquato, que interpreto em Terror da Vermelha.
- Fantástica a recuperação de um cartão postal de Torquato para Oiticica a respeito de Navilouca: “em vez de filme, revista”, parodiando o cartaz de Nosferato “onde se vê dia, veja-se noite”. Esse detalhe confere maior importância ao número único da revista.
- Isis não cai na esparrela do uso dos controversos diagnósticos psiquiátricos e da pretendida (por uns e outros) discussão da homossexualidade, que de nada acrescentam ao personagem literário. O que é um sopro de ar nesse deserto!
Boa resenha. Saudei o trabalho da Isis com igual entusiasmo.
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Excelente livro.Ótima resenha!
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Estava procurando o livro para ler, após matéria na CartaCapital desta semana, e tenho o prazer de encontrar teu comentário! O Risco do Berro já provocou bons reencontros! És um aprendiz de escritor maravilhoso. Abraços. Sandra Fagundes.
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Boa tarde!
Obrigada pela resenha Edmar, forte!
A quem interessar, deixei alguns livros no mercado livre, mas se preferir entrar em contato direto comigo (idrost55@gmail.com) posso enviar com prazer pelos correios.
Download gratuito na Overmundo…
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No dia 08.05, teremos um encontro com a autora em uma noite, de “bate papo” com um grupo de intelectuais, aqui em São Luís. Estamos ansiosos, para “bater está bolinha” com ela.
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